Por David Alves Gomes
Cheguei num bar com dois amigos para pôr os papos em dia. Sentamos em uma
mesa em formato triangular, na qual os dois ficaram em posições diagonais a
mim: um à direita e outro à esquerda. Papo pra lá, papo pra cá, surgiu a
conversa sobre uma possível chacina em um bairro da periferia de Salvador:
treze negros mortos, a Polícia alegou confronto com traficantes, testemunhas
alegaram execução sumária, somente um indivíduo possuía antecedentes criminais
por tráficos de drogas e um outro por brigas no carnaval, nos cadáveres há indícios de
práticas de tortura. O amigo da direita foi logo se exaltando:
— Tem que matar todos esses marginais mesmo, rapaz! Esta cidade precisa
de uma limpeza. Esses bandidos vivem matando pais e mães de família… a morte
para eles ainda é pouco.
O amigo da esquerda discordou do anterior:
— Acredito que a pena de morte não é a solução. Não adianta você matar
um, dois, treze… sempre surgirão outros…
O que tem de ser feito é investir no social, em educação; só assim a sociedade
melhora.
— Eu entendo que se deve investir em educação. Mas pra certos casos não
adianta. Uma coisa é o cara roubar pra comer, esse cara ainda pode mudar, mas
estuprador e traficante que tira tantas vidas não tem conserto: é uma praga
social. Merece a morte mesmo. — falou o da direita.
— O problema é muito mais embaixo. O traficante não tem medo de morrer.
Ele está revoltado contra este sistema de exploração e exclusão. Está disposto
a qualquer coisa. Eles já sabem que, ao seguir esse caminho, o que resta para
eles é cadeia ou caixão. A maioria deles morre antes dos trinta. Se não se
investir em educação e em uma maior distribuição de renda, isso irá se
reproduzir de forma continuada. A questão é que o sistema lucra com o tráfico
de drogas. No entanto, a guerra ao tráfico é uma guerra inútil, pois você mata
um traficante aqui, nasce outro ali. Fora que, como a maioria dos pobres são
negros e, consequentemente, a maioria dos traficantes também são negros, a
guerra ao tráfico é só mais uma ferramente de perpetuação do racismo, pois se o
Estado somente entra com a Polícia na favela e deixa o social de lado, está se
dificultando a ascensão social de milhares de negros no Brasil. — argumentou o
da esquerda.
— Lá vem você com blá, blá, blá de social. Eu nunca fui rico e não virei
traficante. Conheço várias pessoas de favela que são trabalhadoras. — retrucou
o colega da direita.
— Mas muitos são seduzidos — salientou o colega da esquerda — matar
traficantes como solução para o tráfico é um atestado de incompetência do
Estado.
— Incompetência?! Incompetência é deixar que famílias de bem sejam mortas
nas mãos desses marginais! — exaltou-se o conhecido da direita.
— Se você me dissesse que se matassem todos os traficantes e assaltantes,
a criminalidade iria acabar, tudo bem. Mas a criminalidade não irá se findar
dessa forma, pois é o próprio sistema que gera a marginalidade. Morreram treze
ontem, nascerão mais treze amanhã. É fato. — afirmou o conhecido da esquerda.
Eu, negro, com o coração fincado na periferia, fiquei estarrecido com a
conversa. Eu, negro, percebi que os treze pretos foram julgados e executados
sem direito ao contraditório. Eu, negro, percebi que há pena de morte no Brasil
para o negro favelado. Eu, negro, percebi que ambos os conhecidos não se preocuparam
com as vidas de treze homens negros e banalizaram as suas mortes. Eu, negro,
percebi que meus conhecidos consideram os treze negros como pragas sociais:
sejam inatas ou geradas pelo sistema. Eu, negro, percebi que ambos consideram
as vidas pretas descartáveis. Eu, negro, desconheço os companheiros às minhas
diagonais.
— Racistas! — disse em alto e bom som.
Observei as caras de espanto. Provavelmente não entenderam o meu grito. Devo explicar? Sempre dei minhas opiniões em voz alta, mas acho que não quiseram me ouvir. O conhecido à esquerda antes parecia convergir com minhas ideias, agora vejo com nitidez que ele nunca ouviu o que disse. Acredito que estou sozinho nesta jornada, aliás, não estou sozinho: há treze ancestrais que me guiam nesta caminhada.
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