terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

TREZE MEMÓRIAS

Por David Alves Gomes

Cheguei num bar com dois amigos para pôr os papos em dia. Sentamos em uma mesa em formato triangular, na qual os dois ficaram em posições diagonais a mim: um à direita e outro à esquerda. Papo pra lá, papo pra cá, surgiu a conversa sobre uma possível chacina em um bairro da periferia de Salvador: treze negros mortos, a Polícia alegou confronto com traficantes, testemunhas alegaram execução sumária, somente um indivíduo possuía antecedentes criminais por tráficos de drogas e um outro por brigas no carnaval, nos cadáveres há indícios de práticas de tortura. O amigo da direita foi logo se exaltando:

— Tem que matar todos esses marginais mesmo, rapaz! Esta cidade precisa de uma limpeza. Esses bandidos vivem matando pais e mães de família… a morte para eles ainda é pouco.

O amigo da esquerda discordou do anterior:

— Acredito que a pena de morte não é a solução. Não adianta você matar um, dois,  treze… sempre surgirão outros… O que tem de ser feito é investir no social, em educação; só assim a sociedade melhora.

— Eu entendo que se deve investir em educação. Mas pra certos casos não adianta. Uma coisa é o cara roubar pra comer, esse cara ainda pode mudar, mas estuprador e traficante que tira tantas vidas não tem conserto: é uma praga social. Merece a morte mesmo. — falou o da direita.

— O problema é muito mais embaixo. O traficante não tem medo de morrer. Ele está revoltado contra este sistema de exploração e exclusão. Está disposto a qualquer coisa. Eles já sabem que, ao seguir esse caminho, o que resta para eles é cadeia ou caixão. A maioria deles morre antes dos trinta. Se não se investir em educação e em uma maior distribuição de renda, isso irá se reproduzir de forma continuada. A questão é que o sistema lucra com o tráfico de drogas. No entanto, a guerra ao tráfico é uma guerra inútil, pois você mata um traficante aqui, nasce outro ali. Fora que, como a maioria dos pobres são negros e, consequentemente, a maioria dos traficantes também são negros, a guerra ao tráfico é só mais uma ferramente de perpetuação do racismo, pois se o Estado somente entra com a Polícia na favela e deixa o social de lado, está se dificultando a ascensão social de milhares de negros no Brasil. — argumentou o da esquerda.

— Lá vem você com blá, blá, blá de social. Eu nunca fui rico e não virei traficante. Conheço várias pessoas de favela que são trabalhadoras. — retrucou o colega da direita.

— Mas muitos são seduzidos — salientou o colega da esquerda — matar traficantes como solução para o tráfico é um atestado de incompetência do Estado.

— Incompetência?! Incompetência é deixar que famílias de bem sejam mortas nas mãos desses marginais! — exaltou-se o conhecido da direita.

— Se você me dissesse que se matassem todos os traficantes e assaltantes, a criminalidade iria acabar, tudo bem. Mas a criminalidade não irá se findar dessa forma, pois é o próprio sistema que gera a marginalidade. Morreram treze ontem, nascerão mais treze amanhã. É fato. — afirmou o conhecido da esquerda.

Eu, negro, com o coração fincado na periferia, fiquei estarrecido com a conversa. Eu, negro, percebi que os treze pretos foram julgados e executados sem direito ao contraditório. Eu, negro, percebi que há pena de morte no Brasil para o negro favelado. Eu, negro, percebi que ambos os conhecidos não se preocuparam com as vidas de treze homens negros e banalizaram as suas mortes. Eu, negro, percebi que meus conhecidos consideram os treze negros como pragas sociais: sejam inatas ou geradas pelo sistema. Eu, negro, percebi que ambos consideram as vidas pretas descartáveis. Eu, negro, desconheço os companheiros às minhas diagonais.

— Racistas! — disse em alto e bom som.

Observei as caras de espanto. Provavelmente não entenderam o meu grito. Devo explicar? Sempre dei minhas opiniões em voz alta, mas acho que não quiseram me ouvir. O conhecido à esquerda antes parecia convergir com minhas ideias, agora vejo com nitidez que ele nunca ouviu o que disse. Acredito que estou sozinho nesta jornada, aliás, não estou sozinho: há treze ancestrais que me guiam nesta caminhada. 

    



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