segunda-feira, 27 de outubro de 2014

CARTA ABERTA A UM MÉDICO

Por David Alves Gomes

Após o resultado das eleições presidenciais confirmando a vitória da presidenta Dilma (PT), recebi a mensagem anônima abaixo pelo Whatsapp. Pelo que escreveu, o autor provavelmente é um médico:

Prezados amigos, enfim terminou mais uma eleição. Serão mais 4 anos de corrupção, impunidade, aparelhamento do Estado e tudo mais que fomos contra quando resolvemos ir às ruas para protestar. Porém ficou claro que quem tem o poder de decisão é o pobre, miserável, que mal sabe assinar o nome, não lê jornal e não tem consciência política, facilmente manipulado por programas sociais que o aprisionam pelo estômago. Diante disso, peço aos amigos um grande favor: não me peçam pra ajudar nenhum pobre. Não me peçam receitas médicas ou pedidos de exames ou ajuda para internamento no SUS, isso porque o povo confirmou que a saúde está muito boa, procurem as filas do sus e os médicos cubanos que rapidamente resolveram seus problemas. Não me entreguem currículos para arranjar emprego, procurem o Senae o Pronatec, pois para o povo as vagas de emprego estão sobrando e com o crescimento econômico vão ter muito mais vagas. Não me peçam dinheiro pra ajudar os mais necessitados, pois pago todos os impostos e o povo brasileiro julgou que a verba roubada dos cofres públicos é insignificante e que não faz falta ao povo. É dessa forma que manifestarei minha indignação pelos próximos 4 anos.

Depois da manifestação do possível médico, elaborei uma carta aberta. Quem sabe a resposta chega até ele.

Médico cubano do Programa Mais Médicos sendo xingado por médicas brasileiras

CARTA ABERTA A UM MÉDICO:

Primeiramente, venho lhe dizer que as manifestações de junho de 2013 surgiram com reivindicações relativas à mobilidade urbana no Brasil. Após, as manifestações tiveram reivindicações genéricas, como o combate à corrupção, mas muitos também levantaram bandeiras como a luta pela legalização do aborto, o combate à homofobia, a autonomia do Ministério Público, o combate ao genocídio do povo negro e inúmeras outras pautas. Por favor, não restrinja as manifestações de junho de 2013 ao combate contra a corrupção, muito menos ao objetivo de tirar o PT do poder. Junho de 2013 não se resume ao seu umbigo. Mas, ainda assim, se formos falar de corrupção, não devemos esquecer das corrupções perpetradas pelo PSDB, inclusive pelo Aécio Neves, como o aeroporto de Cláudio, o helicóptero carregado de cocaína, o mensalão mineiro e todos os outros casos de corrupção que foram arquivados sem julgamento por influências do PSDB. O PT não criou a corrupção no Brasil. Dizer isso soa bastante ingênuo ou leviano (para se utilizar de um termo com que o Aécio Neves gosta muito, talvez por uma imensa identificação pessoal).

Você diz: “ficou claro que quem tem o poder de decisão é o pobre, miserável, que mal sabe assinar o nome, não lê jornal e não tem consciência política, facilmente manipulado por programas sociais que o aprisionam pelo estômago”. É necessário pontuar algumas coisas: o programa Bolsa-Família obriga às crianças beneficiárias frequentarem a escola, o que permite que tais famílias rompam com a tradicional disposição social brasileira: a falta de mobilidade social e o acesso à educação formal, quando milhares de crianças teriam que trabalhar e deixar de estudar para aumentar a renda da família. Acredito que você não trabalhou quando criança. Falo em educação formal porque existem a educação popular e a também chamada educação doméstica, a qual parece que você não adquiriu quando desrespeitou milhares de famílias brasileiras por não possuírem um alto nível de renda e um curso superior. A sua fala traz um imenso preconceito de classe social: será mesmo que não possuir uma educação formal restringe a capacidade de discernimento e inteligência de um indivíduo? Será mesmo que possuir um alto grau de escolarização garante essa capacidade? Você é a prova viva de que a graduação não traz inteligência. Vou fornecer-lhe, de forma gratuita, uma pequena aula sobre a formação social do povo brasileiro.

O Brasil formou-se basicamente através da união de três povos: portugueses, índios e escravizados africanos (falo “escravizados” e não “escravos”, porque os negros não são essencialmente “escravos”, apesar de a elite brasileira considerar como sua propriedade a sua empregada doméstica, que agora possui direitos trabalhistas por causa dos “petralhas”). Claro que ainda tivemos as imigrações europeias, japonesas etc, mas em menor número. Contudo, essa união não fora nada harmoniosa, o Brasil construiu-se com a dizimação dos povos indígenas e com a subordinação de povos africanos ao trabalho forçado. A miscigenação brasileira, que muitos exaltam, surgiu inúmeras vezes através do sistemático estupro de mulheres negras por parte dos seus senhores. O antropólogo Osmundo Pinho afirma que a construção da nação brasileira foi realizada através do sexo, através de uma estrutura de conjuntura que reificava o corpo negro e  dominava o indivíduo através de uma biopolítica nos termos de Foucault: basicamente o controle da vida do indivíduo através do controle do seu corpo, sendo o sexo o caminho para tal. Caso essa passagem tenha ficado um pouco difícil para a sua compreensão, sugiro a leitura de História da Sexualidade do filósofo Michel Foucault. Você pode estar se perguntando: “para quê esse idiota está escrevendo tudo isso?” Veja bem, compreender, ainda que de forma resumida, a estruturação social do povo brasileiro é necessário para entender o presente e escolher caminhos para o futuro. A história do Brasil foi marcada pela subordinação das alteridades das chamadas minorias: mulheres, negros, índios, homossexuais, não cristãos etc. estavam sempre subordinados a um padrão: homem, branco, heterossexual e cristão. É importante ressaltar também que a herança escravocrata, aliada ao racismo, manteve e mantém a maioria dos pobres com cor definida: a cor negra.

Dessa forma, não permitir ou deslegitimar o voto de pessoas pobres atende não somente a um projeto político elitista, mas também racista. A sua concepção de inferioridade intelectual dos pobres está embutida desde quando você talvez se autodenomine “doutor”, somente por ser um médico. O título de “doutor”, na atualidade, somente é atribuído a quem fez doutorado (e mesmo assim no âmbito acadêmico), apesar de médicos e advogados se autodenominarem “doutores”, mesmo sem possuírem essa titulação acadêmica, apegando-se a um decreto da época do Imperador Dom Pedro I (um evidente senso de superioridade e nobreza). Contudo, essas duas profissões tradicionalmente elitistas estão sofrendo rasuras com o governo do PT. Com a adoção das cotas raciais, um negro pobre pode estudar medicina ou direito em uma universidade federal. As cotas não são a solução para a desigualdade social e racial no ensino universitário, mas funcionam como um importante paliativo, pois o ensino básico, ao ser ampliado, fora criminosamente sucateado para que a população pobre não ascendesse socialmente. A luta que devemos levantar é a da melhoria no ensino básico e não a perpetuação de uma elite. Se você não lembra de suas aulas de História, quando o voto no Brasil não era universal, a elite se perpetuava no poder e não apresentava qualquer política que possibilitasse, ainda que infimamente, a ascensão social da maioria da população. Você, com uma aparente preocupação com o povo brasileiro, não quer nada menos que tutelá-lo: aquele “ignorante” que você fornecia com aparente bom grado uma receita médica, não votou em seu candidato. Você tem ojeriza a um pobre, essa é a verdade. Os médicos cubanos possuem uma preocupação social muito maior do que você. Aliás, a medicina cubana é reconhecida internacionalmente, inclusive neste momento com o reconhecimento da OMS à grande atuação dos médicos cubanos no combate ao ebola. Pelo que você escreveu, você descartou todo o seu juramento que fez quando se formou em medicina, pois não está preocupado com a população, quer apenas possuir os seus altos rendimentos, pagar os impostos que tanto enfatiza, e tentar perpetuar no poder um governo elitista, de privatizações, de arrocho salarial, de alto desemprego. Podemos fazer todas as críticas ao atual governo (inclusive eu as faço de forma bastante incisiva e que me fizeram votar nulo por duas eleições), mas ele vem promovendo uma distribuição de renda e reduzindo, ainda que de maneira bastante insuficiente, a desigualdade social e racial que foi construída desde a formação do povo brasileiro. Existem muitos problemas, até porque o PT está aliado ao grande capital (só a direita histérica acredita que o PT é comunista), mas as melhorias pontuais do atual governo ainda assim são imprescindíveis. São essas pequenas melhorias que a classe média e a elite brasileira se incomodam. Para você, talvez seja difícil ser colega de um médico preto não é mesmo? Seja cubano ou brasileiro.

sábado, 4 de outubro de 2014

POR QUE VOTAREI EM DILMA: A CONTRADIÇÃO DE UM SOCIALISTA

Por David Alves Gomes


           
Nas últimas eleições votei nulo. Votei nulo porque considerava (e ainda considero) que nenhum partido representava as minhas aspirações políticas. Não concordo com as políticas petistas adotadas frente às chamadas “minorias” (como os LGBTs, mulheres, negros/as e indígenas). O PT simplesmente se cala frente ao genocídio do povo negro perpetrado pelas Polícias, não avança nos direitos das mulheres (como a discussão sobre a legalização do aborto) e dos LGBTs, além de estar ao lado do agronegócio na dizimação de povos indígenas e com um projeto desenvolvimentista. Por todos esses motivos, e mais tantos outros de ordem político-econômica, votei nulo na eleição passada. Assim, entendo perfeitamente quando alguém, alegando o que foi listado acima, diz que irá votar nulo nestas eleições. Mas por que votarei em Dilma agora?

Com certeza o ser humano é um ser contraditório, pois eu teria todos os motivos para não votar no PT, mas ainda assim votarei. Vamos lá: apesar de o PT não atender a demandas tão urgentes e tão caras, acredito que seja muito pior se Aécio ou Marina sejam eleitos. O governo do PSDB já sabemos como é: privatizações, arrocho salarial, alta taxa de desemprego, quase inexistência de concursos públicos etc. O salário-mínimo com o PT ainda não é o suficiente para a subsistência da população, aliás, ele é baixíssimo. Entretanto, o seu valor tem aumentado bem mais frente à política adotada pelos tucanos: o Armínio Fraga, cotado para ser o Ministro da Fazenda de Aécio Neves, caso este seja eleito, informou que o salário-mínimo cresceu demais: só se for o “salário-mínimo” dele. Marina Silva afirma possuir uma “nova política”, mas será que ela é tão nova mesmo? Vamos listar alguns fatos: Recuo no programa em relação às demandas LGBTs (por “ordem” do Pastor homofóbico Silas Malafaia, que a apoia, assim como o racista e homofóbico Marco Feliciano); o Márcio França, coordenador financeiro da campanha de Marina Silva, é o vice na chapa da candidatura do tucano da Opus Dei Geraldo Alckmin; a banqueira Neca Setúbal, do Itaú, é outra que manda em Marina que tornará, caso eleita, o Banco Central independente, ou seja, a política financeira do país estará sob controle de bancos privados (como o Itaú), aumentando-se as taxas de juros, reduzindo, ainda mais, o poder de compra do brasileiro. Essa política neoliberal é a mesma adotada pelo PSDB, e, talvez por isso, é que o ex-presidente FHC disse que Marina e Aécio devem se unir, deve ser por isso que Marina autorizou campanha conjunta com Alckmin em São Paulo, talvez por isso que existem tucanos na campanha de Marina. Marina diz que irá governar com os “melhores”, mas pelo visto, ou ela esquece, ou o seu cinismo é muito grande (acredito que seja isso), que não existe imparcialidade em qualquer lugar, muito menos na política: os supostos “melhores” que ela escolhe possuem uma determinada visão política que irá atender a certas demandas.